Demência como espaço nômade
- lumannrich
- 21 de nov. de 2024
- 15 min de leitura
Atualizado: 30 de jan.

Memória é tema sensível em Atafona. Há 70 anos a cidade de 6.779 habitantes
vem perdendo seu território para o mar. Um violento processo de erosão marinha já
engoliu oito quarteirões e cerca de 500 edificações (...) Conforme o mar avança, a
população vai caminhando para trás e para os lados, em uma coreografia dramática,
um tango entre as águas e os moradores.
(1) Escolhi o termo demência, que se aplica “aos distúrbios mentais que evoluem
progressivamente em direção a uma alteração definitiva das funções intelectuais de base.”
(Messy, 121) em lugar do termo Alzheimer, que é frequentemente usado como equivalente à
demência (ou como englobando todas as demências). Messy nos mostra como o termo
Alzheimer localiza a demência na velhice e se torna o estandarte do mal envelhecimento, algo que os gerontólogos tentam endireitar através da prevenção.
Que tipo de vida é possível em meio à impermanência? Penso nos
processos demenciais e no apagar da memória que promovem. Enquanto
avançam, o sujeito vai caminhando para trás e para os lados em uma busca
dramática pelas referências perdidas a cada dia.
O fragmento clínico escolhido pertence ao Acompanhamento
Terapêutico (2) de um paciente de 82 anos recentemente diagnosticado com
Doença de Alzheimer. Acompanhar terapeuticamente um paciente nessas
condições é desafiador em muitas camadas: o paciente geralmente está
assustado, a família não sabe muito bem o que fazer com a informação
recebida, os médicos podem pouco face a uma doença que permanece sem
cura e cujo diagnóstico definitivo só é possível através da biópsia do tecido
cerebral. Ainda assim é uma sentença de morte.
(2) Na sequência, utilizaremos a abreviação AT para acompanhamento terapêutico e at para
acompanhante terapêutico.
É compreensível que a família de uma pessoa diagnosticada com uma
doença incapacitante e incurável tenha pouca abertura para um at, que não
carrega uma malinha de elixires ou equipamentos e brochuras de exercícios.
Como a falta de memória parece significar o mesmo que falta de psiquismo,
trata-se o sujeito com Alzheimer como se fosse uma máquina quebrada cujas
palavras já não fazem sentido e em cuja vontade não se precisa mais prestar
atenção. “Esse enterro antecipado, aconselhado pelo poder médico impotente,
tira a culpa dos próximos de seus sentimentos agressivos e a angústia frente a
seus desejos de morte: podemos matá-lo pois ele já está morto” (Messy, 130).
Na minha experiência, as famílias procuram o at quando já tentaram
muitos outros caminhos. Na primeira conversa comigo, parecem querer ouvir
uma promessa, uma ideia mirabolante que mudaria o curso das coisas. Minha
posição como psicanalista é de que há um sujeito a ser escutado e um sentido
a ser dado ao que se perdeu e ao que permanece. Se sou aceita, parto da
premissa de que o tempo junto ao paciente será curto pois, se é que promovo
alguma mudança, ela é da ordem das coisas ínfimas e, portanto, imperceptível
a olhos que esperam por milagres.
Escolhi esse fragmento clínico por causa das perguntas que me
provocou. Seria possível pensar na perda de memória em termos
cartográficos? Uma porção de território que já foi mapeada e pela qual o sujeito
circulava é perdida, interrompida. A carta geográfica se desfaz e os marcos
territoriais desaparecem gradualmente, fazendo com que o sujeito fique à
deriva, perdido num espaço que já não reconhece.
Deleuze e Guattari pensam sobre o espaço. Diferenciam o espaço
sedentário – cheio de muros, recintos e percursos entre esses recintos - do
espaço nômade - vazio desabitado, deserto no qual é difícil orientar-se, “como
um imenso mar onde o único rastro reconhecível é o sulco deixado pelo
caminhar” (Careri, p. 42). É possível pensar que nas demências o território
conhecido encolha mais a cada dia, que o território sedentário, formado pela
memória dos dias vividos, pelos hábitos e pessoas importantes, seja invadido
pelo espaço nômade? Mas talvez não se trate de perder marcas: trate-se de
perder as marcas que se tinha disponíveis no presente e vê-las serem
substituídas por marcas de antes que não se consegue controlar. E o que
poderia causar isso?
Ao longo da vida, conforme envelhecemos, bailamos num certo
equilíbrio entre o que ganhamos e perdemos, até o dia em que as perdas
passam a se acumular com mais rapidez: aposentadoria, fragilidade do corpo,
morte de pessoas queridas. A falta do objeto perdido é vivida dolorosamente
pelo sujeito. Quando é possível, entra em ação o árduo e longo trabalho de
luto, que consiste em desligar a libido do objeto amado e de suas
representações inconscientes e religar essa energia, agora livre, a novos
objetos.
O processo de luto é um processo de constituição do aparelho psíquico
e da organização da personalidade. A perda do primeiro objeto põe em
funcionamento um mecanismo de busca constante por novos objetos para
satisfazer o desejo. Se num primeiro momento a perda leva o psiquismo à
alucinação, com o trabalho de luto tem-se a procura por novos caminhos de
satisfação a partir da relação com objetos externos. Para Ogden (CHERIX,
2017) esse momento de conceituação teórica de Freud é fundamental
justamente por nos permitir vislumbrar a criação de um mundo interno
complexo no qual o Eu se encontra dividido e onde pode se refugiar,
afastando-se da realidade externa.
“Quando um objeto desaparece, fica um buraco na dinâmica de
investimentos previamente organizada e a energia precisa encontrar novos
caminhos para escoar.” (Cherix, 50). Processo que é lento e penoso porque o
Eu não abandona de bom grado uma posição libidinal na qual encontrava
satisfação. Eu que demora a aceitar que terá que se deslocar, mudar de lugar
contra a sua vontade. Daí a noção de trabalho. E a ideia de conflito, uma vez
que parte do Eu não quer aceitar que perdeu. Parte do Eu segue investindo a
representação do objeto como forma de defesa frente à dor. É assim que o
trabalho do luto se dá gradualmente ou deveria se dar gradualmente para não
se tornar uma experiência traumática. A presença do objeto que ainda é
alimentada só poderá desaparecer quando o trabalho sobre a perda e a falta
for concluído.
Cabe relembrar o percurso da libido para poder se deslocar de um
objeto a outro. Durante o narcisismo primário a libido é investida no Eu. Isso
determina o modo como amamos, que é sempre um modo narcísico: amamos
no outro o que amamos ou gostaríamos de amar em nós. “A importância do
narcisismo para a circulação da libido também aparece no final do texto sobre o
luto, quando Freud afirma que o indivíduo precisa encontrar uma satisfação
narcísica em estar vivo, para conseguir concretizar o trabalho de luto. Logo, o
processo de luto é apresentado por Freud como uma crise econômica e o
aparelho psíquico encontra novamente seu equilíbrio ao final do processo”
(Cherix, p.54).
É assim que se pode afirmar que o processo de luto é um risco para a
integridade narcísica do sujeito, uma vez que amava no objeto perdido partes
de si. O trabalho de luto é uma tentativa de recuperar o que se projetava de si
no outro. Perder o objeto ameaça a imagem que temos de nós mesmos, razão
pela qual se pode afirmar haver uma grande ameaça ao aparelho psíquico no
envelhecimento, uma vez que o ligar e desligar a energia e a libido acontecem
em velocidade muito grande. A cada desligamento das representações
inconscientes atreladas ao objeto perdido há um empobrecimento do eu, um
esfoliamento imaginário, como dirá Messy.
Podemos supor que haja um limite do quanto o aparelho psíquico
consegue aguentar desse trabalho árduo de desligar a libido dos objetos
perdidos e religar em outros. Quando o trabalho do luto não pode acontecer, o
aparelho psíquico fica repleto de energia desligada que se volta para o Eu sem
que esse consiga investir em novos objetos. Na tentativa de encontrar um
funcionamento psíquico compatível com o excesso de energia liberada, o
psiquismo pode optar pelo caminho da regressão, facilitador da entrada num
processo demencial no qual, para se proteger da perda, o aparelho psíquico
passa a investir numa relação objetal interna por meio da fantasia.
Jack Messy entende que a entrada na demência é uma defesa diante da
agonia da morte, defesa contra alguma ameaça que provoque terror ou uma
perda muito brutal. Para esse autor parece importante salientar que o objeto
investido que se perde pode estar fora do corpo: desemprego, aposentadoria,
falecimento de uma pessoa próxima ou relacionado a ele, como no caso de
“uma lesão cerebral, que, ao acarretar no enfraquecimento das funções
cognitivas, pode agir como um choque traumático e fazer o indivíduo submergir
na demência (...)”. (Messy, 126)
Nas demências há um empobrecimento psíquico, o que Messy chamou
de esfoliamento, no qual desaparecem partes do ego num processo que
destrói as identificações realizadas e bem sucedidas. Há também um
afrouxamento do mecanismo de defesa do recalque, o que faz com que este
irrompa sem controle e torne o que era familiar e mapeado, o espaço
sedentário, em espaço movediço e poroso. Como representar
cartograficamente esse novo território?
A forma mais simples da carta geográfica não é a que hoje se nos
mostra como a mais natural, isto é, o mapa que representa a superfície do solo
vista por um observador extraterrestre. A primeira necessidade de fixar os
lugares na carta está ligada à viagem: é o lembrete da sucessão de etapas, o
traçado de um percurso.
Ítalo Calvino
Vem primeiro do viajante a necessidade de fazer um registro de seu
percurso. Kublai Kan encomenda a Marco Polo os relatos de suas viagens. Ele
poderá escolher de que maneira irá levar tudo isso ao grande Kan, mas para si,
para que possa encontrar-se no espaço, necessita fixar os lugares por onde
passou. É de quem está em viagem que parte a necessidade de cartografar.
O at é um viajante que se beneficia muito da construção de um mapa.
Cartógrafo, procura acompanhar o paciente sem saber de antemão o que irá
lhe atravessar. Se o cartógrafo é um amante dos acasos (COSTA, 2014, 71),
uma vez que deve estar disponível ao inusitado que o seu campo lhe oferece,
também o at precisa de disponibilidade e abertura.
“A cartografia se ocupa dos caminhos errantes, estando suscetível às
contaminações e variações produzidas durante o próprio processo de
pesquisa.” (Costa, 71). É uma metodologia que exige do pesquisador posturas
singulares. O cartógrafo “ocupa-se de planos moventes, de campos que estão
em contínuo movimento na medida em que o pesquisador se movimenta.
Cartografar exige como condição primordial estar implicado no próprio
movimento de pesquisa. A sujeira é essa mistura necessária.” (Costa, 71)
Há uma sujeira necessária no método do AT, definido por Susana Kuras
e Silvia Resnik como: ajudar a procurar um destino para a dor psíquica. Se o
acompanhante terapêutico é aquele que ajuda a procurar, isso o insere numa
interessante horizontalidade com o sujeito. O acompanhante terapêutico não
sabe mais, apenas coloca-se ao lado do sujeito para com ele procurar, o que
implica que aceita a possibilidade de não encontrar. Creio que isso esteja
ligado ao interesse pelo processo, mais do que por um possível objetivo a ser
alcançado.
Se o at ajuda a procurar um destino para a dor psíquica é porque crê
que essa dor que acomete o sujeito, apesar de ser inteiramente dele, pode ser
transformada em outra coisa, destinada, reconfigurada. A clínica do AT se
propõe a acompanhar o sujeito onde quer que ele esteja, inclusive em
pântanos e areias escaldantes. Por isso, pode ser pensada como capaz de
promover outras formas de circulação. Ao propor uma concentração do at “ao
lado” das pulsões de vida e como testemunho das pulsões de morte, este age
como facilitador da ligação de energia livre em energia ligada a
representações, o que é fundamental para o processo de simbolização.
(MAUER E RESNIKY).
Ao situar o processo de envelhecimento no momento que vivemos de
capitalismo neoliberal e consumismo excessivo, Delia Goldfarb reflete sobre o
quanto a aposentadoria joga o sujeito na pobreza e na exclusão das trocas,
impulsionando o desinvestimento, uma desapropriação subjetiva dos papeis
sociais e ruptura da aliança narcisista com o mundo dos objetos. O
desinvestimento se alia, no idoso, à perda da auto-estima e a libido, que agora
fica liberada e portanto, flutuante, deixa o campo livre à pulsão de morte, o que
instala o desejo de morte. A pulsão de morte é puro desinvestimento e ataca o
próprio Eu, quando este é objeto de investimento.
“Quando se acaba de renunciar a todo perdido, devorou-se também a si
mesmo” diz Freud em A transitoriedade (Goldfarb). E segue explicando que
nesse processo a libido se vê livre novamente para substituir os objetos
perdidos por outros, isso se ainda formos jovens e capazes de vida. A limitação
temporal da vida é um empecilho para o trabalho do luto. “Assim, o maior
trabalho na velhice será o de um luto antecipado, luto por um objeto ainda não
perdido – a própria vida – porém condenado. Luto que pode ser impossível”
(202).
A ressignificação do passado é uma possibilidade de trabalho com um
sujeito demenciado, na medida em que colabora para desconstruir a rigidez
que não permite que se vive qualquer frustração. Poder fazer as pazes com o
passado, reatar laços com objetos de amor perdidos e poder fazer algo com
esses objetos. Não se trata de um pedido de análise, mas (...) “de alguém que
ajude a procurar o perdido, encontrar as palavras que lhe permitam lembrar a
perda que tão profundamente atacou seu narcisismo, achar a lembrança do
que precisou ser esquecido (...) (Goldfarb, 232).
Como vimos, a perda brutal de um objeto faz com que se perca parte do
Eu que estava ligada a esse objeto. Com o acúmulo de perdas e a
impossibilidade de elaboração, o sujeito tenta escapar do sofrimento pelo
esquecimento, a demência, o que o lança a posições regressivas e na qual o
ego fica colocado de lado, esfoliado como diria Messy. A comunicação com o
entorno fica cada vez mais comprometida, o que não implica na inexistência de
um sujeito, pelo contrário: faz-se cada vez mais importante uma presença
capaz de reassegurar que há um sujeito de desejo onde alguns só enxergam
uma doença. A tarefa do at é “seguir emitindo mensagens, captar os apelos
sejam quais forem nossas impressões de ‘doente ausente’ ou quaisquer que
sejam as afirmações da família”. (Messy, 126)
Não se pode lembrar o esquecido impunemente. Cavocar a memória do
esquecimento é enfiar as mãos em montanhas e labirintos e espelhos e pirâmides de
lixo, de sujeira, de monstros, de imagens desconexas, em que uma cena de mãe
cozinhando pode ser enganchada numa cena de tortura.
Noemi Jaffe
Chego à casa de Artúr e Marta me conta que decidiu fazer a festa de
Yom Kipur em sua casa porque era a irmã que sempre fazia, mas esta morreu
há seis meses. Marta está angustiada com a decisão, sem saber se o marido
vai ficar bem com tanta gente. Artúr me recebe alegre e comento com ele sobre
o cheiro delicioso de comida. Muito tomada pela conversa que tivera com a
esposa, talvez numa tentativa de prepará-lo para a festa, pergunto se sabe que
amanhã é uma festa religiosa muito importante. Ele me diz que não e continuo:
você ainda segue os preceitos da religião judaica? Os seguia quando criança?
Artúr é tragado para o passado e o assassinato de 6 milhões de judeus.
Para o navio em que partiu de Veneza com os pais, último antes que Mussolini
interviesse, à conversa na sala da sua casa de infância em que os pais
“contabilizavam” quantas pessoas da família haviam sido mortas pela Shoah.
Me diz que a dor é grande demais, pede desculpas, diz que não quer
mais falar disso e começa a chorar. Percebo agora que não só ele é tragado
para o espaço nômade: também eu perco o chão e passo a ser gerida por um
esquema de referenciais que não compreendo e não consigo antever. Contra-
transferencialmente, sou tomada por um sentimento de impotência e temor que
me paralisam.
Ele pede para que joguemos dominó, quem sabe uma tentativa de voltar
a caminhar por um espaço conhecido, mas novamente as lembranças se
sobrepõe e ele fala, se desculpa, chora. Há uma invasão em curso que ele não
consegue controlar: tudo o que ele havia mantido sob um véu de afastamento,
sabe-se lá a que imenso custo psíquico, volta como uma tropa de soldados
inimigos que o atacam impiedosamente sem que ele possa se defender.
Começamos a partida de dominó. A primeira transcorre sem problemas,
ele ganha, parece se organizar um pouco. Mas na segunda partida eu tenho as
três pedras que servem nas duas pontas e não sei o que fazer com isso. Tento
mostrar a ele que estou em dúvida, mas isso o irrita e então faço jogadas
seguidas até bater. Jogo as três pedras em sequência e Artúr fica com suas
pedras que não pôde jogar. Ele fica desorientado, repetindo que isso não pode
ter acontecido, que não é possível e começa a chamar pela esposa.
Ela atende prontamente a seu chamado, mas não consegue ajudar.
Tenta entender o que está acontecendo e dá algumas sugestões que parecem
agitá-lo mais. Ele pede algo para comer e ela pergunta se ele quer pão de
queijo. Diante de sua afirmativa explica que vai demorar e pergunta se ele
consegue esperar. Diz que sim, mas dois minutos depois já está irritado pela
demora. “Na ausência de pontos de referência estáveis, o nômade
desenvolveu a capacidade de construir o seu próprio mapa em cada instante, a
sua geografia está em constante mutação.” (Careri, 42). Artúr está tentando se
localizar, precisa de um ponto fixo no território, algo conhecido.
Como acompanhar esse movimento nômade? Faz-se necessário refletir
acerca do extraordinário esforço que se apresenta ao at nessa experiência de
ser tragado junto ao paciente para o espaço indistinto. “O traçado nômade
distribui os homens num espaço aberto, indefinido, não comunicante”. (Deleuze
e Guattari in Careri, p 34).
Para pensar sobre a clínica do at como um trabalho nômade tento
colocar o fragmento clínico em imagens. Artúr está em um lugar que me parece
familiar porque é um idoso que está demenciando. Tenho ferramentas na
minha caixa e faço uso delas. “No idoso, o importante é trabalhar com as
sensações do passado: as músicas, cheiros, sabores, pois, assim como os
esquecimentos se produzem como uma avalanche, as recordações também”.
(Goldberg, 233). Sinto certa familiaridade que me faz pensar que já trilhei esse
caminho.
Artúr está parado e o levo para um ponto que considero favorável (tentar
associar o cheiro de comida à festa que acontecerá e à sua infância). Ele
aceita ir comigo, o que é um sinal de confiança e abertura, mas o terreno
desconhecido nos leva para um pântano onde ele é mordido por milhares de
bichinhos (as memórias do navio e dos milhões de mortos). Eu não sinto as
picadas, só vejo o efeito que produzem nele. Ele me leva embora de lá.
Me leva para um lugar que julgava conhecer (jogo de dominó), mas se
perde no caminho (algo falha no jogo) e volta para o pântano. Muitas picadas
outra vez (de novo a avalanche de memórias terríveis). Foge novamente
comigo em seu encalço, mas o lugar conhecido está diferente e ao invés de
oásis seguimos na areia quente (meu olhar de angústia no qual já não pode se
escorar). Ele pede ajuda, não para mim porque percebe que eu não sei o que
fazer, mas a ajuda que chega já não consegue oferecer tranquilidade (pão de
queijo que demora). Ele está lançado a um lugar ermo e assustador do qual
precisa escapar sozinho.
Existiriam estratégias para caminhar nesse espaço? Há como saber
quando é seguro evocar o passado na clínica com pacientes demenciados?
Como se deixar levar pelo outro nesse espaço? Porque o espaço nômade é
dele, é nele que se abre e eu preciso encontrar o ritmo dele para poder segui-
lo. A que velocidade caminha? Como são seus passos? Se eu for atrás dele
terei menos chance de me perder? Pensei que poderia ser interessante
contextualizar a festa porque a casa estava muito agitada e Marta estava
angustiada com o que poderia acontecer no dia seguinte. Mas haveria como
prepará-lo para algo?
A ideia de cartografar o espaço nômade de um paciente demenciado
está ligada a uma tentativa de tornar o trabalho do at menos angustiante, tanto
junto ao paciente quanto à família. No mapa que a dupla acompanhante e
acompanhado fazem ao caminhar aparecem os pontos de refúgio, os lugares
queridos, para onde nunca devemos voltar. Tentei compartilhar o mapa de
Artúr com a família, pensei que isso pudesse municiá-los para lidar com o
cotidiano tão desafiador, mas não fui bem sucedida. Talvez porque não
acreditasse nesse recurso ou o achasse fantasioso demais, talvez porque a
família não tivesse abertura para essa ideia, tão soterrados de dúvidas e
medos estavam.
Ao mapear o espaço nômade de Artúr pude perceber que havia uma
enorme geração de angústia quando ele perguntava o que iriam fazer agora e
seu interlocutor não sabia o que dizer. Uma pessoa perdida que pede
informações e recebe como resposta “vamos pensar juntos num caminho?” não
sente alívio. Uma pessoa perdida que pede por informações quer uma
resposta, quer sair da angústia de sentir-se perdido. E Artúr, quando pergunta
o que vão fazer agora, está perdido no tempo e precisa de ajuda para se
encontrar. Uma resposta certeira é algo que acalma, que dá a ele uma direção,
um lugar para estar tranquilo.
É claro que ele não poderia receber sempre como resposta que é hora
de jogar dominó, ainda que esse seja um refúgio em seu mapa. Por isso
precisamos experimentar atividades com ele para saber o que funciona e ter
isso como oferta para quando ele perguntar. Mas como experimentar se ele
não aceita nada? Para isso precisamos de tempo, para repetir a mesma
atividade muitas vezes, para ouvir o mesmo relato incontáveis vezes e, a partir
de novas perguntas, abrir algo novo.
Compreender uma cidade significa colher fragmentos. E lançar entre eles
estranhas pontes, por intermédio das quais seja possível encontrar uma pluralidade de
significados.
Ou de encruzilhadas herméticas.
Massimo Canevacci
Volto para junto de Artúr. Que carta geográfica é possível construir a
partir dos percursos que trilhei com ele até agora? Que pontos de referência?
Quantos oásis? Quais são os lugares perigosos? Que trilhas se pode seguir
para escapar desses lugares? Alguns pontos fixos (refúgios) da carta de Artúr:
sua esposa, dominó, comida, música (?), futebol de botão (?). Ele usou os 3
primeiros pontos como tentativa de reencontrar um caminho. O traçado estava
desaparecendo e ele cada vez mais angustiado tentou se agarrar ao dominó.
Mas que ironia! Justo ali, com o presente sendo invadido por 6 milhões de judeus mortos e um navio que partia, o dominó falha como ponto de referência e se torna também errante, fugidio. Ele então ativa o segundo ponto fixo: a
esposa. Ele pedia a ela que o salvasse e ela não sabia como. Talvez sua
angústia a tenha impedido de ser o ponto de apoio e descanso.
Ele passa então a pedir por comida e novamente a falha: ela oferece
pão de queijo e explica que vai demorar numa tentativa de fazer algum acordo
com ele. Mas que tipo de acordo Artúr seria capaz de fazer naquele momento?
Diz que espera, mas depois de dois minutos começa a ficar irritado e chorar
dizendo que só quer comer.
As pessoas ao seu redor se angustiam junto com ele e pensam que
oferecer outras comidas poderá acalmá-lo. Ele recusa e chora pelo pão de
queijo. Estou sentada à sua frente em silêncio e tento me conectar com ele de
alguma forma. Tudo o que tenho são palavras e ele leva o indicador à boca me
pedindo silêncio.
Referências Bibliográficas
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comunicação urbana. São Paulo, Studio Nobel, 2004.
CARERI, Francesco. Walkscapes: o caminhar como prática estética. São
Paulo, Ed G. Gilli, 2013.
CHERIX, Katia. Contribuições da metapsicologia freudiana para a
compreensão dos sintomas de demência tipo Alzheimer. Tese de doutorado,
faculdade de Psicologia da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2017.
COSTA, Luciano Bedin da. Cartografia: uma outra forma de pesquisar.
Disponível em: https://lume.ufrgs.br/handle/10183/106583. 2014
COSTA, Mariana. A dança de Atafona (RJ): a cidade que se move conforme o
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GOLDFARB, Delia Catulo. Demências. São Paulo, Casa do Psicólogo, 2004.
JAFFE, Noemi. O que os cegos estão sonhando? São Paulo, Ed 34, 2012.
KURAS de Mauer, Susana; Resnicky, Silvia. Territórios do acompanhamento
terapêutico. Buenos Aires, Letra Viva, 2009.
MESSY, Jack. A pessoa idosa não existe. São Paulo, ALEPH, 1999.
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