top of page

Demência como espaço nômade

  • lumannrich
  • 21 de nov. de 2024
  • 15 min de leitura

Atualizado: 30 de jan.



Memória é tema sensível em Atafona. Há 70 anos a cidade de 6.779 habitantes

vem perdendo seu território para o mar. Um violento processo de erosão marinha já

engoliu oito quarteirões e cerca de 500 edificações (...) Conforme o mar avança, a

população vai caminhando para trás e para os lados, em uma coreografia dramática,

um tango entre as águas e os moradores.


(1) Escolhi o termo demência, que se aplica “aos distúrbios mentais que evoluem

progressivamente em direção a uma alteração definitiva das funções intelectuais de base.”

(Messy, 121) em lugar do termo Alzheimer, que é frequentemente usado como equivalente à

demência (ou como englobando todas as demências). Messy nos mostra como o termo

Alzheimer localiza a demência na velhice e se torna o estandarte do mal envelhecimento, algo que os gerontólogos tentam endireitar através da prevenção.


Que tipo de vida é possível em meio à impermanência? Penso nos

processos demenciais e no apagar da memória que promovem. Enquanto

avançam, o sujeito vai caminhando para trás e para os lados em uma busca

dramática pelas referências perdidas a cada dia.


O fragmento clínico escolhido pertence ao Acompanhamento



Terapêutico (2) de um paciente de 82 anos recentemente diagnosticado com

Doença de Alzheimer. Acompanhar terapeuticamente um paciente nessas

condições é desafiador em muitas camadas: o paciente geralmente está

assustado, a família não sabe muito bem o que fazer com a informação

recebida, os médicos podem pouco face a uma doença que permanece sem

cura e cujo diagnóstico definitivo só é possível através da biópsia do tecido

cerebral. Ainda assim é uma sentença de morte.


(2) Na sequência, utilizaremos a abreviação AT para acompanhamento terapêutico e at para

acompanhante terapêutico.


É compreensível que a família de uma pessoa diagnosticada com uma

doença incapacitante e incurável tenha pouca abertura para um at, que não

carrega uma malinha de elixires ou equipamentos e brochuras de exercícios.

Como a falta de memória parece significar o mesmo que falta de psiquismo,

trata-se o sujeito com Alzheimer como se fosse uma máquina quebrada cujas

palavras já não fazem sentido e em cuja vontade não se precisa mais prestar

atenção. “Esse enterro antecipado, aconselhado pelo poder médico impotente,

tira a culpa dos próximos de seus sentimentos agressivos e a angústia frente a

seus desejos de morte: podemos matá-lo pois ele já está morto” (Messy, 130).

Na minha experiência, as famílias procuram o at quando já tentaram

muitos outros caminhos. Na primeira conversa comigo, parecem querer ouvir

uma promessa, uma ideia mirabolante que mudaria o curso das coisas. Minha

posição como psicanalista é de que há um sujeito a ser escutado e um sentido

a ser dado ao que se perdeu e ao que permanece. Se sou aceita, parto da

premissa de que o tempo junto ao paciente será curto pois, se é que promovo

alguma mudança, ela é da ordem das coisas ínfimas e, portanto, imperceptível

a olhos que esperam por milagres.


Escolhi esse fragmento clínico por causa das perguntas que me

provocou. Seria possível pensar na perda de memória em termos

cartográficos? Uma porção de território que já foi mapeada e pela qual o sujeito

circulava é perdida, interrompida. A carta geográfica se desfaz e os marcos

territoriais desaparecem gradualmente, fazendo com que o sujeito fique à

deriva, perdido num espaço que já não reconhece.


Deleuze e Guattari pensam sobre o espaço. Diferenciam o espaço

sedentário – cheio de muros, recintos e percursos entre esses recintos - do

espaço nômade - vazio desabitado, deserto no qual é difícil orientar-se, “como

um imenso mar onde o único rastro reconhecível é o sulco deixado pelo

caminhar” (Careri, p. 42). É possível pensar que nas demências o território

conhecido encolha mais a cada dia, que o território sedentário, formado pela

memória dos dias vividos, pelos hábitos e pessoas importantes, seja invadido

pelo espaço nômade? Mas talvez não se trate de perder marcas: trate-se de

perder as marcas que se tinha disponíveis no presente e vê-las serem

substituídas por marcas de antes que não se consegue controlar. E o que

poderia causar isso?


Ao longo da vida, conforme envelhecemos, bailamos num certo

equilíbrio entre o que ganhamos e perdemos, até o dia em que as perdas

passam a se acumular com mais rapidez: aposentadoria, fragilidade do corpo,

morte de pessoas queridas. A falta do objeto perdido é vivida dolorosamente

pelo sujeito. Quando é possível, entra em ação o árduo e longo trabalho de

luto, que consiste em desligar a libido do objeto amado e de suas

representações inconscientes e religar essa energia, agora livre, a novos

objetos.


O processo de luto é um processo de constituição do aparelho psíquico

e da organização da personalidade. A perda do primeiro objeto põe em

funcionamento um mecanismo de busca constante por novos objetos para

satisfazer o desejo. Se num primeiro momento a perda leva o psiquismo à

alucinação, com o trabalho de luto tem-se a procura por novos caminhos de

satisfação a partir da relação com objetos externos. Para Ogden (CHERIX,

2017) esse momento de conceituação teórica de Freud é fundamental

justamente por nos permitir vislumbrar a criação de um mundo interno

complexo no qual o Eu se encontra dividido e onde pode se refugiar,

afastando-se da realidade externa.


“Quando um objeto desaparece, fica um buraco na dinâmica de

investimentos previamente organizada e a energia precisa encontrar novos

caminhos para escoar.” (Cherix, 50). Processo que é lento e penoso porque o

Eu não abandona de bom grado uma posição libidinal na qual encontrava

satisfação. Eu que demora a aceitar que terá que se deslocar, mudar de lugar

contra a sua vontade. Daí a noção de trabalho. E a ideia de conflito, uma vez

que parte do Eu não quer aceitar que perdeu. Parte do Eu segue investindo a

representação do objeto como forma de defesa frente à dor. É assim que o

trabalho do luto se dá gradualmente ou deveria se dar gradualmente para não

se tornar uma experiência traumática. A presença do objeto que ainda é

alimentada só poderá desaparecer quando o trabalho sobre a perda e a falta

for concluído.


Cabe relembrar o percurso da libido para poder se deslocar de um

objeto a outro. Durante o narcisismo primário a libido é investida no Eu. Isso

determina o modo como amamos, que é sempre um modo narcísico: amamos

no outro o que amamos ou gostaríamos de amar em nós. “A importância do

narcisismo para a circulação da libido também aparece no final do texto sobre o

luto, quando Freud afirma que o indivíduo precisa encontrar uma satisfação

narcísica em estar vivo, para conseguir concretizar o trabalho de luto. Logo, o

processo de luto é apresentado por Freud como uma crise econômica e o

aparelho psíquico encontra novamente seu equilíbrio ao final do processo”

(Cherix, p.54).


É assim que se pode afirmar que o processo de luto é um risco para a

integridade narcísica do sujeito, uma vez que amava no objeto perdido partes

de si. O trabalho de luto é uma tentativa de recuperar o que se projetava de si

no outro. Perder o objeto ameaça a imagem que temos de nós mesmos, razão

pela qual se pode afirmar haver uma grande ameaça ao aparelho psíquico no

envelhecimento, uma vez que o ligar e desligar a energia e a libido acontecem

em velocidade muito grande. A cada desligamento das representações

inconscientes atreladas ao objeto perdido há um empobrecimento do eu, um

esfoliamento imaginário, como dirá Messy.


Podemos supor que haja um limite do quanto o aparelho psíquico

consegue aguentar desse trabalho árduo de desligar a libido dos objetos

perdidos e religar em outros. Quando o trabalho do luto não pode acontecer, o

aparelho psíquico fica repleto de energia desligada que se volta para o Eu sem

que esse consiga investir em novos objetos. Na tentativa de encontrar um

funcionamento psíquico compatível com o excesso de energia liberada, o

psiquismo pode optar pelo caminho da regressão, facilitador da entrada num

processo demencial no qual, para se proteger da perda, o aparelho psíquico

passa a investir numa relação objetal interna por meio da fantasia.


Jack Messy entende que a entrada na demência é uma defesa diante da

agonia da morte, defesa contra alguma ameaça que provoque terror ou uma

perda muito brutal. Para esse autor parece importante salientar que o objeto

investido que se perde pode estar fora do corpo: desemprego, aposentadoria,

falecimento de uma pessoa próxima ou relacionado a ele, como no caso de

“uma lesão cerebral, que, ao acarretar no enfraquecimento das funções

cognitivas, pode agir como um choque traumático e fazer o indivíduo submergir

na demência (...)”. (Messy, 126)


Nas demências há um empobrecimento psíquico, o que Messy chamou

de esfoliamento, no qual desaparecem partes do ego num processo que

destrói as identificações realizadas e bem sucedidas. Há também um

afrouxamento do mecanismo de defesa do recalque, o que faz com que este

irrompa sem controle e torne o que era familiar e mapeado, o espaço

sedentário, em espaço movediço e poroso. Como representar

cartograficamente esse novo território?


A forma mais simples da carta geográfica não é a que hoje se nos

mostra como a mais natural, isto é, o mapa que representa a superfície do solo

vista por um observador extraterrestre. A primeira necessidade de fixar os

lugares na carta está ligada à viagem: é o lembrete da sucessão de etapas, o

traçado de um percurso.

Ítalo Calvino


Vem primeiro do viajante a necessidade de fazer um registro de seu

percurso. Kublai Kan encomenda a Marco Polo os relatos de suas viagens. Ele

poderá escolher de que maneira irá levar tudo isso ao grande Kan, mas para si,

para que possa encontrar-se no espaço, necessita fixar os lugares por onde

passou. É de quem está em viagem que parte a necessidade de cartografar.

O at é um viajante que se beneficia muito da construção de um mapa.

Cartógrafo, procura acompanhar o paciente sem saber de antemão o que irá

lhe atravessar. Se o cartógrafo é um amante dos acasos (COSTA, 2014, 71),

uma vez que deve estar disponível ao inusitado que o seu campo lhe oferece,

também o at precisa de disponibilidade e abertura.


“A cartografia se ocupa dos caminhos errantes, estando suscetível às

contaminações e variações produzidas durante o próprio processo de

pesquisa.” (Costa, 71). É uma metodologia que exige do pesquisador posturas

singulares. O cartógrafo “ocupa-se de planos moventes, de campos que estão

em contínuo movimento na medida em que o pesquisador se movimenta.

Cartografar exige como condição primordial estar implicado no próprio

movimento de pesquisa. A sujeira é essa mistura necessária.” (Costa, 71)

Há uma sujeira necessária no método do AT, definido por Susana Kuras

e Silvia Resnik como: ​ajudar a procurar um destino para a dor psíquica​. Se o

acompanhante terapêutico é aquele que ajuda a procurar, isso o insere numa

interessante horizontalidade com o sujeito. O acompanhante terapêutico não

sabe mais, apenas coloca-se ao lado do sujeito para com ele procurar, o que

implica que aceita a possibilidade de não encontrar. Creio que isso esteja

ligado ao interesse pelo processo, mais do que por um possível objetivo a ser

alcançado.


Se o at ajuda a procurar um destino para a dor psíquica é porque crê

que essa dor que acomete o sujeito, apesar de ser inteiramente dele, pode ser

transformada em outra coisa, destinada, reconfigurada. A clínica do AT se

propõe a acompanhar o sujeito onde quer que ele esteja, inclusive em

pântanos e areias escaldantes. Por isso, pode ser pensada como capaz de

promover outras formas de circulação. Ao propor uma concentração do at “ao

lado” das pulsões de vida e como testemunho das pulsões de morte, este age

como facilitador da ligação de energia livre em energia ligada a

representações, o que é fundamental para o processo de simbolização.

(MAUER E RESNIKY).


Ao situar o processo de envelhecimento no momento que vivemos de

capitalismo neoliberal e consumismo excessivo, Delia Goldfarb reflete sobre o

quanto a aposentadoria joga o sujeito na pobreza e na exclusão das trocas,

impulsionando o desinvestimento, uma desapropriação subjetiva dos papeis

sociais e ruptura da aliança narcisista com o mundo dos objetos. O

desinvestimento se alia, no idoso, à perda da auto-estima e a libido, que agora

fica liberada e portanto, flutuante, deixa o campo livre à pulsão de morte, o que

instala o desejo de morte. A pulsão de morte é puro desinvestimento e ataca o

próprio Eu, quando este é objeto de investimento.


“Quando se acaba de renunciar a todo perdido, devorou-se também a si

mesmo” diz Freud em A transitoriedade (Goldfarb). E segue explicando que

nesse processo a libido se vê livre novamente para substituir os objetos

perdidos por outros, isso se ainda formos jovens e capazes de vida. A limitação

temporal da vida é um empecilho para o trabalho do luto. “Assim, o maior

trabalho na velhice será o de um luto antecipado, luto por um objeto ainda não

perdido – a própria vida – porém condenado. Luto que pode ser impossível”

(202).


A ressignificação do passado é uma possibilidade de trabalho com um

sujeito demenciado, na medida em que colabora para desconstruir a rigidez

que não permite que se vive qualquer frustração. Poder fazer as pazes com o

passado, reatar laços com objetos de amor perdidos e poder fazer algo com

esses objetos. Não se trata de um pedido de análise, mas (...) “de alguém que

ajude a procurar o perdido, encontrar as palavras que lhe permitam lembrar a

perda que tão profundamente atacou seu narcisismo, achar a lembrança do

que precisou ser esquecido (...) (Goldfarb, 232).


Como vimos, a perda brutal de um objeto faz com que se perca parte do

Eu que estava ligada a esse objeto. Com o acúmulo de perdas e a

impossibilidade de elaboração, o sujeito tenta escapar do sofrimento pelo

esquecimento, a demência, o que o lança a posições regressivas e na qual o

ego fica colocado de lado, esfoliado como diria Messy. A comunicação com o

entorno fica cada vez mais comprometida, o que não implica na inexistência de

um sujeito, pelo contrário: faz-se cada vez mais importante uma presença

capaz de reassegurar que há um sujeito de desejo onde alguns só enxergam

uma doença. A tarefa do at é “seguir emitindo mensagens, captar os apelos

sejam quais forem nossas impressões de ‘doente ausente’ ou quaisquer que

sejam as afirmações da família”. (Messy, 126)


Não se pode lembrar o esquecido impunemente. Cavocar a memória do

esquecimento é enfiar as mãos em montanhas e labirintos e espelhos e pirâmides de

lixo, de sujeira, de monstros, de imagens desconexas, em que uma cena de mãe

cozinhando pode ser enganchada numa cena de tortura.

Noemi Jaffe


Chego à casa de Artúr e Marta me conta que decidiu fazer a festa de

Yom Kipur em sua casa porque era a irmã que sempre fazia, mas esta morreu

há seis meses. Marta está angustiada com a decisão, sem saber se o marido

vai ficar bem com tanta gente. Artúr me recebe alegre e comento com ele sobre

o cheiro delicioso de comida. Muito tomada pela conversa que tivera com a

esposa, talvez numa tentativa de prepará-lo para a festa, pergunto se sabe que

amanhã é uma festa religiosa muito importante. Ele me diz que não e continuo:

você ainda segue os preceitos da religião judaica? Os seguia quando criança?

Artúr é tragado para o passado e o assassinato de 6 milhões de judeus.


Para o navio em que partiu de Veneza com os pais, último antes que Mussolini

interviesse, à conversa na sala da sua casa de infância em que os pais

“contabilizavam” quantas pessoas da família haviam sido mortas pela Shoah.

Me diz que a dor é grande demais, pede desculpas, diz que não quer

mais falar disso e começa a chorar. Percebo agora que não só ele é tragado

para o espaço nômade: também eu perco o chão e passo a ser gerida por um

esquema de referenciais que não compreendo e não consigo antever. Contra-

transferencialmente, sou tomada por um sentimento de impotência e temor que

me paralisam.


Ele pede para que joguemos dominó, quem sabe uma tentativa de voltar

a caminhar por um espaço conhecido, mas novamente as lembranças se

sobrepõe e ele fala, se desculpa, chora. Há uma invasão em curso que ele não

consegue controlar: tudo o que ele havia mantido sob um véu de afastamento,

sabe-se lá a que imenso custo psíquico, volta como uma tropa de soldados

inimigos que o atacam impiedosamente sem que ele possa se defender.

Começamos a partida de dominó. A primeira transcorre sem problemas,

ele ganha, parece se organizar um pouco. Mas na segunda partida eu tenho as

três pedras que servem nas duas pontas e não sei o que fazer com isso. Tento

mostrar a ele que estou em dúvida, mas isso o irrita e então faço jogadas

seguidas até bater. Jogo as três pedras em sequência e Artúr fica com suas

pedras que não pôde jogar. Ele fica desorientado, repetindo que isso não pode

ter acontecido, que não é possível e começa a chamar pela esposa.

Ela atende prontamente a seu chamado, mas não consegue ajudar.


Tenta entender o que está acontecendo e dá algumas sugestões que parecem

agitá-lo mais. Ele pede algo para comer e ela pergunta se ele quer pão de

queijo. Diante de sua afirmativa explica que vai demorar e pergunta se ele

consegue esperar. Diz que sim, mas dois minutos depois já está irritado pela

demora. “Na ausência de pontos de referência estáveis, o nômade

desenvolveu a capacidade de construir o seu próprio mapa em cada instante, a

sua geografia está em constante mutação.” (Careri, 42). Artúr está tentando se

localizar, precisa de um ponto fixo no território, algo conhecido.

Como acompanhar esse movimento nômade? Faz-se necessário refletir

acerca do extraordinário esforço que se apresenta ao at nessa experiência de

ser tragado junto ao paciente para o espaço indistinto. “O traçado nômade

distribui os homens num espaço aberto, indefinido, não comunicante”. (Deleuze

e Guattari in Careri, p 34).


Para pensar sobre a clínica do at como um trabalho nômade tento

colocar o fragmento clínico em imagens. Artúr está em um lugar que me parece

familiar porque é um idoso que está demenciando. Tenho ferramentas na

minha caixa e faço uso delas. “No idoso, o importante é trabalhar com as

sensações do passado: as músicas, cheiros, sabores, pois, assim como os

esquecimentos se produzem como uma avalanche, as recordações também”.

(Goldberg, 233). Sinto certa familiaridade que me faz pensar que já trilhei esse

caminho.


Artúr está parado e o levo para um ponto que considero favorável (tentar

associar o cheiro de comida à festa que acontecerá e à sua infância). Ele

aceita ir comigo, o que é um sinal de confiança e abertura, mas o terreno

desconhecido nos leva para um pântano onde ele é mordido por milhares de

bichinhos (as memórias do navio e dos milhões de mortos). Eu não sinto as

picadas, só vejo o efeito que produzem nele. Ele me leva embora de lá.

Me leva para um lugar que julgava conhecer (jogo de dominó), mas se

perde no caminho (algo falha no jogo) e volta para o pântano. Muitas picadas

outra vez (de novo a avalanche de memórias terríveis). Foge novamente

comigo em seu encalço, mas o lugar conhecido está diferente e ao invés de

oásis seguimos na areia quente (meu olhar de angústia no qual já não pode se

escorar). Ele pede ajuda, não para mim porque percebe que eu não sei o que

fazer, mas a ajuda que chega já não consegue oferecer tranquilidade (pão de

queijo que demora). Ele está lançado a um lugar ermo e assustador do qual

precisa escapar sozinho.


Existiriam estratégias para caminhar nesse espaço? Há como saber

quando é seguro evocar o passado na clínica com pacientes demenciados?

Como se deixar levar pelo outro nesse espaço? Porque o espaço nômade é

dele, é nele que se abre e eu preciso encontrar o ritmo dele para poder segui-

lo. A que velocidade caminha? Como são seus passos? Se eu for atrás dele

terei menos chance de me perder? Pensei que poderia ser interessante

contextualizar a festa porque a casa estava muito agitada e Marta estava

angustiada com o que poderia acontecer no dia seguinte. Mas haveria como

prepará-lo para algo?


A ideia de cartografar o espaço nômade de um paciente demenciado

está ligada a uma tentativa de tornar o trabalho do at menos angustiante, tanto

junto ao paciente quanto à família. No mapa que a dupla acompanhante e

acompanhado fazem ao caminhar aparecem os pontos de refúgio, os lugares

queridos, para onde nunca devemos voltar. Tentei compartilhar o mapa de

Artúr com a família, pensei que isso pudesse municiá-los para lidar com o

cotidiano tão desafiador, mas não fui bem sucedida. Talvez porque não

acreditasse nesse recurso ou o achasse fantasioso demais, talvez porque a

família não tivesse abertura para essa ideia, tão soterrados de dúvidas e

medos estavam.


Ao mapear o espaço nômade de Artúr pude perceber que havia uma

enorme geração de angústia quando ele perguntava o que iriam fazer agora e

seu interlocutor não sabia o que dizer. Uma pessoa perdida que pede

informações e recebe como resposta “vamos pensar juntos num caminho?” não

sente alívio. Uma pessoa perdida que pede por informações quer uma

resposta, quer sair da angústia de sentir-se perdido. E Artúr, quando pergunta

o que vão fazer agora, está perdido no tempo e precisa de ajuda para se

encontrar. Uma resposta certeira é algo que acalma, que dá a ele uma direção,

um lugar para estar tranquilo.


É claro que ele não poderia receber sempre como resposta que é hora

de jogar dominó, ainda que esse seja um refúgio em seu mapa. Por isso

precisamos experimentar atividades com ele para saber o que funciona e ter

isso como oferta para quando ele perguntar. Mas como experimentar se ele

não aceita nada? Para isso precisamos de tempo, para repetir a mesma

atividade muitas vezes, para ouvir o mesmo relato incontáveis vezes e, a partir

de novas perguntas, abrir algo novo.


Compreender uma cidade significa colher fragmentos. E lançar entre eles

estranhas pontes, por intermédio das quais seja possível encontrar uma pluralidade de

significados.

Ou de encruzilhadas herméticas.

Massimo Canevacci


Volto para junto de Artúr. Que carta geográfica é possível construir a

partir dos percursos que trilhei com ele até agora? Que pontos de referência?

Quantos oásis? Quais são os lugares perigosos? Que trilhas se pode seguir

para escapar desses lugares? Alguns pontos fixos (refúgios) da carta de Artúr:

sua esposa, dominó, comida, música (?), futebol de botão (?). Ele usou os 3

primeiros pontos como tentativa de reencontrar um caminho. O traçado estava

desaparecendo e ele cada vez mais angustiado tentou se agarrar ao dominó.

Mas que ironia! Justo ali, com o presente sendo invadido por 6 milhões de judeus mortos e um navio que partia, o dominó falha como ponto de referência e se torna também errante, fugidio. Ele então ativa o segundo ponto fixo: a

esposa. Ele pedia a ela que o salvasse e ela não sabia como. Talvez sua

angústia a tenha impedido de ser o ponto de apoio e descanso.

Ele passa então a pedir por comida e novamente a falha: ela oferece

pão de queijo e explica que vai demorar numa tentativa de fazer algum acordo

com ele. Mas que tipo de acordo Artúr seria capaz de fazer naquele momento?

Diz que espera, mas depois de dois minutos começa a ficar irritado e chorar

dizendo que só quer comer.


As pessoas ao seu redor se angustiam junto com ele e pensam que

oferecer outras comidas poderá acalmá-lo. Ele recusa e chora pelo pão de

queijo. Estou sentada à sua frente em silêncio e tento me conectar com ele de

alguma forma. Tudo o que tenho são palavras e ele leva o indicador à boca me

pedindo silêncio.


Referências Bibliográficas


CANEVACCI, Massimo. A cidade polifônica. Ensaio sobre a antropologia da

comunicação urbana. São Paulo, Studio Nobel, 2004.


CARERI, Francesco. Walkscapes: o caminhar como prática estética. São

Paulo, Ed G. Gilli, 2013.


CHERIX, Katia. Contribuições da metapsicologia freudiana para a

compreensão dos sintomas de demência tipo Alzheimer. Tese de doutorado,

faculdade de Psicologia da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2017.


COSTA, Luciano Bedin da. Cartografia: uma outra forma de pesquisar.

Disponível em: https://lume.ufrgs.br/handle/10183/106583. 2014


COSTA, Mariana. A dança de Atafona (RJ): a cidade que se move conforme o

mar avança. Disponível em:

cidade-que-se-move-conforme-o-mar-avanca.htm?cmpid=copiaecola. 2021


GOLDFARB, Delia Catulo. Demências. São Paulo, Casa do Psicólogo, 2004.


JAFFE, Noemi. O que os cegos estão sonhando? São Paulo, Ed 34, 2012.


KURAS de Mauer, Susana; Resnicky, Silvia. ​Territórios do acompanhamento

terapêutico. Buenos Aires, Letra Viva, 2009.


MESSY, Jack. A pessoa idosa não existe. São Paulo, ALEPH, 1999.

Comentarios


Luciana Mannrich © Desde 2024
Desenvolvido por Mariel Meira

bottom of page